A
graça tem cheiro de escândalo. Quando alguém perguntou ao teólogo Karl Barth o
que ele diria a Adolf Hitler, ele respondeu: "Jesus Cristo morreu pelos
seus pecados". Pelos pecados de Hitler? De Judas? A graça não tem limites?
Dois gigantes do Antigo Testamento, Moisés e Davi, cometeram
homicídio e Deus ainda os amava. Como já mencionei, outro homem que dirigiu uma
campanha de torturas criou um padrão missionário que nunca foi igualado. Paulo
nunca se cansou de descrever esse milagre do perdão: "Outrora fui blasfemo e perseguidor e injuriador, mas alcancei misericórdia, porque o fiz
ignorantemente, na incredulidade; e a graça de nosso Senhor superabundou
com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. Fiel é esta palavra e digna de toda a
aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais
eu sou o principal".
Ron
Nikkel, que dirige a Associação Internacional nas Prisões, tem um discurso
padrão que transmite aos prisioneiros em todo o mundo. "Não sabemos quem
vai para o céu", ele diz. E prossegue o discurso: "Jesus deu a
entender que uma porção de pessoas serão surpreendidas: 'Nem todos os que me
dizem: Senhor, Senhor, entrarão no reino dos céus'. Mas nós sabemos que alguns
ladrões e homicidas estarão ali. Jesus prometeu o céu ao ladrão na cruz e o
apóstolo Paulo foi cúmplice de assassinatos". Tenho observado a expressão
nos rostos de prisioneiros em lugares como o Chile, Peru e Rússia quando a
verdade de Ron atinge o ponto. Para eles, o escândalo da graça soa bom demais
para ser verdade.
Quando Bill Moyers filmou um especial para a televisão a
respeito do hino "Maravilhosa Graça", sua câmera seguiu Johnny Cash
até as entranhas de uma prisão de segurança máxima. — O que este hino significa
para você? — Cash perguntou aos prisioneiros depois de cantar o hino. Um homem
cumprindo pena por tentativa de assassinato replicou: — Fui diácono, membro de
igreja, mas não sabia o que a graça significava até que vim parar em um lugar
como este.
O potencial
para o "abuso da graça" ficou claro para mim, de uma maneira bastante
forte, em uma conversa com um amigo que chamarei de Daniel. Já era tarde da
noite e eu estava sentado em um restaurante com Daniel ouvindo-o
confidenciar-me que havia decidido abandonar sua esposa depois de quinze anos
de casamento. Ele havia se envolvido com uma mulher mais jovem e mais bonita,
alguém que o fazia sentir-se vivo, "como eu não me sentia há anos",
conforme ele mesmo dizia. Sua esposa e ele não tinham grandes incompatibilidades.
Ele simplesmente queria uma mudança, como um homem que deseja ardentemente um
carro novo.
Daniel, um cristão, conhecia bem as conseqüências pessoais e
morais do que ia fazer. Sua decisão de separar-se infligiria prejuízos
permanentes à sua esposa e aos três filhos. Mesmo assim, ele disse, a força que
o impulsionava para a mulher mais jovem, como um ímã poderoso, era forte demais
para ele poder resistir.
Escutei a história de Daniel com tristeza e amargura, falando
pouco enquanto tentava absorver a notícia. Então, durante a sobremesa, ele
deixou cair a bomba: "Na verdade, Philip, quero saber uma coisa. O motivo
porque quis falar com você hoje à noite foi para lhe perguntar o que está me
preocupando. Você estuda a Bíblia. Você acha que Deus pode perdoar uma coisa tão
horrível como a que vou fazer?".
A pergunta de Daniel jazia na mesa como uma serpente viva;
tomei três xícaras de café antes de me atrever a dar uma resposta. Nesse
intervalo, pensei muito na repercussão da graça. Como poderia dissuadir meu
amigo de cometer um erro terrível se ele souber que o perdão jaz ali ao virar a
esquina? Ou, como na sombria história de Robert Hughes, na Austrália, o que
evitaria que um condenado cometesse homicídio se ele soubesse com antecedência
que seria perdoado?
Há um "gancho" na graça que preciso mencionar
agora. Nas palavras de C. S. Lewis:5 "Agostinho diz 'Deus dá
onde Ele encontra mãos vazias'. Um homem cujas mãos estão cheias de pacotes não
pode receber um presente". A graça, em outras palavras, tem de ser
recebida. Lewis6 explica que aquilo que eu chamei de "abuso da
graça" brota de uma confusão entre tolerância e perdão: "Tolerar um
erro é simplesmente ignorá-lo, tratá-lo como se fosse uma coisa correta. Mas o
perdão precisa ser aceito, além de oferecido, para que seja completo. Um homem
que não admite culpa não pode aceitar o perdão".
Foi
o que eu disse ao meu amigo Daniel, em resumo. "Se Deus pode perdoá-lo?
Naturalmente. Você conhece a Bíblia. Deus usa homicidas e adúlteros. A bem da
verdade, Pedro e Paulo, dois homens que falharam muito, lideraram a igreja do
Novo Testamento. O perdão é problema nosso, e não de Deus. O que nós
temos de fazer para cometer pecado é que nos distancia de Deus — nós nos
transformamos no próprio ato de rebeldia — e não há garantia de que um dia
voltemos. Você me pergunta agora a respeito do perdão, mas será que mais tarde
você vai querer o perdão, especialmente se ele envolver arrependimento?"
Meses depois de nossa conversa, Daniel fez sua escolha e
abandonou a família. Ainda não vi evidências de arrependimento. Agora ele se
inclina a racionalizar sua decisão como uma maneira de fugir de um casamento
infeliz. Ele se afastou de seus antigos amigos por considerá-los
"demasiadamente estreitos e críticos" e procura substitutos que
celebrem sua recém-descoberta libertação. Para mim, entretanto, Daniel não
parece muito liberado. O preço da "liberdade" significou virar as
costas para aqueles que mais se interessam por ele. Ele me diz também que agora
Deus não faz mais parte de sua vida. "Talvez mais tarde", ele diz.
Deus assumiu um grande risco anunciando o perdão com
antecedência. E o escândalo da graça envolve uma transferência desse risco para
nós.
"Verdadeiramente é um erro estar cheio de faltas",
disse Pascal, "mas é um erro ainda maior estar cheio delas e não desejar
reconhecê-las".
As pessoas se dividem em duas categorias. Não estou me
referindo aos culpados e aos "justos", como muitas pessoas. pensam.
Antes, porém, em duas categorias diferentes de pessoas culpadas. Há pessoas
culpadas que reconhecem seus en"os. E pessoas culpadas que não os
reconhecem. São dois grupos que convergem em uma cena registrada em João 8.
O incidente acontece nos átrios do templo, onde Jesus está
ensinando. Um grupo de fariseus e mestres da lei interrompe o "culto"
arrastando uma mulher apanhada em adultério. Segundo o costume, ela é desnuda
da cintura para cima como prova de sua vergonha. Aterrorizada, indefesa,
publicamente humilhada, a mulher se encolhe diante de Jesus, os braços cobrindo
os seios nus.
Adultério
envolve duas pessoas, naturalmente, mas a mulher está sozinha diante de Jesus
(talvez tivesse sido apanhada na cama com um fariseu?). João deixa claro que os
acusadores estavam mais interessados em criar uma armadilha para Jesus do que
punir um crime. E a armadilha era muito inteligente. A lei de Moisés
especificava morte por apedrejamento para o adultério, mas a lei romana proibia
os judeus de realizar execuções. Jesus obedeceria a Moisés ou a Roma? Ou Ele,
notório por sua misericórdia, encontraria uma maneira dessa adúltera escapar?
Neste caso, teria de desafiar a lei de Moisés diante de uma multidão reunida
nos próprios átrios do templo. Todos os olhos se fixaram em Jesus.
Nesse momento
cheio de tensão, Jesus faz uma coisa diferente: Ele se inclina e escreve no
chão com o dedo. Esta, de fato, é a única cena dos evangelhos que apresenta
Jesus escrevendo. Para suas únicas palavras escritas Ele escolheu como agente
um galho e escreveu na areia, sabendo que os pés, o vento, ou a chuva logo as
apagariam.
João
não nos conta o que Jesus escreveu na areia. No seu filme a respeito da vida de
Jesus, Cecil B. De Mille o apresenta anotando os nomes dos diversos pecados:
adultério, homicídio, orgulho, avareza, luxúria. Cada vez que Jesus escreve uma
palavra, alguns fariseus se afastam. A imaginação de De Mille, como todas as
outras, é uma conjectura. Sabemos apenas que nesse momento carregado de perigo
Jesus pára, fica em silêncio e escreve com o dedo na areia. O poeta irlandês
Seamus Heaney7 comenta que Jesus "marca passo em todo o sentido
dessa expressão", concentrando a atenção de todos e criando uma brecha de
significado entre o que está acontecendo e o que o auditório deseja que
aconteça.
Aqueles que estão no auditório vêem, sem dúvida, duas
categorias de atores no drama: a mulher culpada, apanhada com as mãos sujas, e
os acusadores "justos", que são, afinal de contas, profissionais
religiosos. Quando Jesus finalmente fala, destrói uma daquelas categorias. — Se
algum de vocês não tem pecado — diz o Filho de Deus, — que seja o primeiro a
atirar uma pedra nesta mulher.
Novamente Ele se inclina para escrever, marcando passo de
novo, e, um a um, todos os acusadores se afastam.
A seguir, Jesus se endireita e dirige-se à mulher, que ficou
sozinha diante dele. — Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?
— Ninguém,
senhor — ela diz.
E para a mulher, tomada pelo terror da expectativa de uma
possível execução, Jesus dá o veredito: — Nem eu te condeno... Vai e abandona
tua vida de pecado.
Assim, em uma pincelada brilhante, Jesus substitui as duas
categorias presumidas, os justos e os culpados, por duas categorias diferentes:
os pecadores que admitem o pecado e os pecadores que o negam. A mulher apanhada
em adultério, desamparada, admitiu sua culpa. Muito mais problemáticas eram as pessoas
que, como os fariseus, negavam ou reprimiam a culpa. Eles também precisavam
estar de mãos vazias para receber a graça divina. O dr. Paul Tournier8
expressa este padrão em linguagem psiquiátrica: "Deus apaga a culpa
consciente, mas traz à consciência a culpa reprimida".
A cena que se encontra em João 8 me desconcerta porque, por
causa de minha própria natureza, identifico-me mais com os acusadores do que
com a acusada. Nego mais do que confesso. Envolvendo meus pecados em um manto
de respeitabilidade, raramente — ou nunca — me deixo apanhar em uma indiscrição
espalhafatosa e pública. Mas, se entendo corretamente esta história, a mulher
pecadora é a que está mais próxima do reino de Deus. De fato, só posso avançar
no reino se me tornar como essa mulher: trêmula, humilde, sem desculpas, as
mãos abertas para receber a graça de Deus.