quarta-feira, 30 de abril de 2014

Os Dons de Expressão:

                                Os Dons de Expressão

                                            Severino Pedro da Silva:

                                                                                                                                                                                                     I - O Dom de Profecia

"E a outro, a profecia" (1 Co 12.10).
O substantivo grego propheteia ("profecia") aparece 19 vezes no Novo Testamento (Mt 13.14; Rm 12.6; 1 Co 12.10; 13.2,8; 14.6,22; 1 Ts 5.20; 1 Tm 1.18; 4.14; 2 Pe 1.20,21; Ap 1.3; 11.6; 19.10; 22.7,10,18,19). Deriva-se do grego pro ("antes", "em favor de") e de phemi ("fa­lar"). Ou seja, "alguém que fala por outrem" e, por exten­são, "intérprete", especialmente da vontade de Deus. ([1])
Em sentido geral, a palavra "profecia", quando deri­vada de pro ("aquilo que jaz adiante"), traz a idéia de vaticínio divino de primeira grandeza.
No presente texto, a palavra "profecia" tem um senti­do especial. Trata-se de "um dos dons do Espírito San­to", significando "uma predição momentânea e sobrena­tural". Neste terceiro grupo de dons espirituais, a profecia assume o primeiro lugar em magnitude. São dons que operam na esfera espiritual.
Os dons de revelação expressam os pensamentos de Deus.
Os dons de poder manifestam sua onipotência e gran­deza, preenchendo o campo inteiro de nossa visão.
Os dons de expressão comunicam os sentimentos do coração de Deus.

1.      A origem da profecia
Há pelo menos três fontes, das quais podem surgir uma mensagem profética:
a. Divina. Isto é, a inspiração que parte diretamente do coração de Deus, fonte de todo bem (Jr 23.28,29; Tg 1.17; 1 Pe4.11).
b. Humana. Neste caso a mensagem parte do coração do próprio profeta, que fala sem autorização do Senhor (2 Sm 7.2-17; Jr 23.16).
c. Demoníaca. A falsa profecia parte diretamente de "um espírito enganador", ou mesmo de "um demônio" (1 Tm 4.1-3; Ap 16.13,14).

2. O valor da profecia
A palavra de Deus ou "palavra profética", foi sempre de "muita valia" para o povo de Deus em geral (1 Sm 3.1). Talvez por isso Moisés tenha exclamado: "Tomara que todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu espírito!" (Nm 11.29).
O profeta Joel, ao vaticinar o grande derramamento do Espírito sobre toda a carne, fala de uma efusão profé­tica: "Vossos filhos e vossas filhas profetizarão" (Jl 2.28).
Finalmente, Paulo manifesta o mesmo sentimento, aconselhando os coríntios a procurar "com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar" (1 Co 14.1). Nos versículos seguintes, o apóstolo reafirma sua admoestação em outros termos, como por exemplo:
"E eu quero que todos vós faleis línguas estranhas; mas muito mais que profetizeis, porque o que profetiza é maior do que o que fala línguas estranhas" (v. 5); "Por­tanto, irmãos, procurai, com zelo, profetizar" (v. 39).
Segundo alguns escritores neotestamentários, parece que na igreja de Corinto ensinadores usavam "palavras persuasivas de sabedoria humana", tornando-se quase impossível aos "indoutos" alcançar o pensamento desses requintados pregadores (cf. 1 Co 2.1-13). Diante de tal circunstância o Espírito de Deus supria esta lacuna, usando alguém com o dom de profecia. Daí o comentário do apóstolo: "Mas se todos profetizarem, e algum indouto ou infiel entrar [no templo], de todos é convencido, de todos é julgado. Os segredos [as dúvidas] do seu coração ficarão manifestos [respondidos], e assim, lançando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus, publicando que Deus está verdadeiramente entre vós" (1 Co 14.24,25).

3. A finalidade da profecia
O dom de profecia tornara-se o mais desejado da igreja em Corinto, provavelmente, como observa Faucett, pelas seguintes razões:
   A profecia visa a edificação da igreja, tema quase que central do capítulo 14 de 1 Coríntios, e não apenas a edificação do crente individual, como é o caso das lín­guas quando não interpretadas.
   A profecia serve para exortação.
   A profecia serve também para consolar.
   A profecia é um meio de transmitir revelações e doutrinas, quando vazadas na revelação plenária.
   A profecia faz soar o "toque" da mensagem cristã que leva o crente a preparar-se para a batalha espiritual.
   A profecia é uma voz clara num mundo de vozes confusas e desassociadas.
   A profecia é um canal de bênção, principalmente de ação de graças, do qual a comunidade inteira pode parti­cipar. Por conseguinte, assemelha-se às línguas e até lhes é superior, porque beneficia a todos, e não somente ao que fala.
• A profecia é um dom espiritual que abençoa os crentes em qualquer lugar onde Deus assim o queira.
  A profecia é uma maneira de ensinar os sentimentos espirituais à alma sincera e anelante pela presença de Deus.
  A profecia deve ser ministrada segundo a medida da fé. Em outras palavras, deve ser transmitida de acordo com as regras e padrões estabelecidos na Palavra de Deus.
  A profecia deve ser transmitida sob os cuidados da direção ministerial (1 Cr 25.2).
  A profecia é um alerta contra o pecado: "Não havendo profecia, o povo se corrompe" (Pv 29.18).
Note que a profecia citada neste capítulo não é o ministério profético que o mesmo Paulo menciona em Efésios 4.11, evidentemente também chamado "dom". Mas é um "dom de governo", ligado diretamente à área ministerial. Enquanto que a profecia, ainda que ligada também ao ministério profético, é um "dom do Espírito Santo" outorgado à igreja para "edificação, exortação e consolação". Os profetas mencionados no Antigo Testa­mento eram pessoas revestidas do "ministério profético", e geralmente iniciavam a mensagem profética, dizendo: "Assim diz o Senhor" ou: "Veio a mim a palavra do Senhor".
No caso do dom de profecia, a mensagem parte sem­pre diretamente de Deus e é transmitida como se o pró­prio Deus estivesse falando. No exercício do ministério profético propriamente dito, dificilmente profetizavam dois ou mais profetas ao mesmo tempo e em um só lugar, como acontece com o dom de profecia. Paulo orienta: "Falem dois ou três pessoas, e os outros julguem. Mas se a outro [profeta], que estiver assentado, for revelado al­guma coisa, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros... E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas" (1 Co 14.29-32).
O ministério profético e o dom de profecia encon­tram-se associados em ambos os Testamentos. Em Nú­meros 11.25,26, o Espírito de Deus repousou sobre se­tenta anciãos de Israel, concedendo-lhes uma espécie de dom de profecia. Eles profetizaram ali, e depois, nunca mais. Entretanto, "no arraial ficaram dois homens; o nome de um era Eldade, e o nome do outro, Medade; e repou­sou sobre eles o Espírito (porquanto estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda), e profetizavam". Eldade e Medade receberam o ministério profético, en­quanto os setenta anciãos receberam apenas uma porção deste ministério, ou seja, o dom de profecia. A palavra hebraica para "profeta" é nabil, e foi usada pela primeira vez em Gênesis 20.7; depois, aparece mais de trezentas vezes no Antigo Testamento. No Novo Testamento, a palavra prophetes aparece 149 vezes. Sete dessas ocor­rências, nas Escrituras, são aplicadas a figuras femininas, ou "profetisas": Miriã, Débora, Hulda, Noadias, a mulher do profeta Isaías, Ana e Jezabel (Êx 15.20; Jz 4.4; 2 Rs 22.12; Ne 6.14; Is 8.3; Lc 2.36; Ap 2.20).
Atos 20.8,9 também revela que Filipe, o evangelista, era pai de "quatro filhas donzelas que profetizavam".
Toda e qualquer profecia, seja plenária (2 Pe 1.19-21) ou uma revelação momentânea operada através do dom, diante de qualquer necessidade da igreja deve trazer em seu conteúdo "o testemunho de Jesus", que é o "espírito de profecia" (Ap 19.10).

II - O Dom de Variedade de Línguas

"E a outro, a variedade de línguas" (1 Co 12.10).
Este dom é até certo ponto menor que o de profecia, conforme declara Paulo ao discorrer sobre os dons espiri­tuais na igreja em Corinto: "E eu quero que todos vós faleis línguas estranhas; mas muito mais que profetizeis, porque o que profetiza é maior do que o que fala lín­guas..." (1 Co 14.5). Entretanto, o apóstolo ressalva: "... a não ser que também interprete".
Devemos ter em mente que está em foco a variedade, e não meramente o dom de línguas, comumente desfruta­do pelos cristãos batizados com o Espírito Santo.

1. No dia de Pentecoste
Alguns estudiosos explicam as línguas faladas no dia de Pentecoste como o resultado da memória sobrenatural vivificada, reproduzindo nos judeus e prosélitos frases e orações ouvidas por eles e guardadas no inconsciente, as quais precisavam usar sob circunstâncias normais. ([2])
O escritor sagrado diz que o fenômeno sobrenatural deixou todos pasmados, a ponto de dizerem: "Pois quê! Não são galileus todos esses homens que estão falando? Como pois os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascido?" (At 2.7,8).
O fenômeno contribuiu para destacar a universalidade da mensagem cristã, em contraste com a expressão naci­onal do judaísmo. Além disso, o Espírito Santo dava cumprimento a mais um vaticínio das Escrituras, que dizia: "Pelo que por lábios estranhos e por outra língua, falará a este povo" (Is 28.11). Qualquer pessoa ficaria impressionada ao ouvir de um estrangeiro algo em sua língua nativa, sem erros gramaticais e sem sotaque, e de modo eloqüente. Uma vez assim impressionada, passaria a dar maior atenção à mensagem. Depois veio o resulta­do: "Naquele dia, agregaram-se quase três mil almas".

2. Depois do dia de Pentecoste
O dom de variedades de línguas ocorre em pelo me­nos três lugares, no Novo Testamento. Apesar de não estarem essas ocorrências vinculadas a grandes concen­trações de visitantes de outras terras, o Espírito Santo operou eficazmente, com demonstração de poder. Estes lugares foram:
a. Cesaréia. "E, dizendo Pedro ainda estas palavras, caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a pala­vra. E os fiéis que eram da circuncisão, todos quantos tinham vindo com Pedro, maravilharam-se de que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. Porque os ouviam falar línguas e magnificar a Deus" (At 10.44-46).
b. Éfeso. "E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas e profetizavam" (At 19.6).
c. Corinto. "E a outro, a variedade de línguas; e a outro, a interpretação das línguas..." (1 Co 12.10).
É possível que Paulo, ao falar sobre "línguas dos homens e dos anjos", em 1 Coríntios 13.1, estivesse aludindo ao dom de variedade de línguas - exatamente como aconteceu no dia de Pentecoste, onde "foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo".
O dom de variedade de línguas possibilita a expres­são, por meios sobrenaturais, de línguas estrangeiras, naturais e humanas, e também de algum idioma celestial. Depende da necessidade e vontade do Espírito Santo (At 2.4).
O dom de variedade de línguas tem sido comumente chamado pelos teólogos de "glossolalia", e particular­mente de "línguas estranhas" pelos cristãos em geral. Inúmeras vezes Deus, através deste dom e de sua inter­pretação, tem edificado, exortado e consolado milhares de pessoas na igreja e até fora dela.
A igreja em Corinto foi agraciada por Deus com todos os dons já manifestos pelo Espírito Santo, a ponto de o apóstolo Paulo comentar: "Porque em tudo fostes enri­quecidos nele, em toda a palavra e em todo o conheci­mento (como foi mesmo o testemunho de Cristo confir­mado entre vós). De maneira que nenhum dom vos fal­ta..." (1 Co 1.5-7).
Deus se manifestava e falava de diversas maneiras. Falava por "meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina". Em outras ocasiões, Deus tam­bém falava por meio de "salmos... de línguas e sua inter­pretação". Outros dons do Espírito Santo eram também manifestos para exaltar o nome de Jesus como Senhor.
O apóstolo mostra a harmoniosa sintonia entre os dons, cooperando cada um em determinada área da igre­ja, de acordo com a distribuição feita pelo Espírito Santo: como o corpo, sendo um mas composto de muitos mem­bros com funções diferentes (1 Co 12.12-27). Nenhum membro deve ser desprezado ou considerado "mais fra­co" ou "menos honroso" - todos são necessários.

3. Diferença entre variedade de línguas e línguas estranhas
Lendo 1 Coríntios 14.27,28, à primeira vista achamos que o apóstolo Paulo está proibindo os crentes de falar em línguas estranhas durante o culto. Mas não é este, com certeza, o pensamento do grande mestre da Palavra de Deus. No mesmo capítulo, ele afirma:
  "O que fala língua estranha edifica-se a si mesmo" (v. 4);
  "E eu quero que todos vós faleis línguas estranhas..." (v. 5);
   "Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos" (v. 18);
   "Não proibais falar línguas" (v. 39).
Entendo que Paulo esteja aqui instruindo sobre o uso correto do dom de variedade de línguas, pois ex­plica que precisa de interpretação: "E, se alguém falar línguas estranhas [variedade de línguas], faça-se isso por dois ou, quando muito, três, 6 por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja cala­do na igreja e fale consigo mesmo e com Deus" (1 Co 14.27,28).
Procurava o apóstolo pôr termo a uma dificuldade: se todos os crentes batizados com o Espírito Santo presentes numa reunião falassem várias línguas aos mesmo tempo, seria humanamente impossível o traba­lho dos intérpretes. Mesmo usados por Deus, precisa­vam interpretar cada língua por sua vez.
Talvez por isso Paulo tenha prescrito: "E, se al­guém falar língua estranha, faça-se isso por dois ou, quando muito, três..." "Por sua vez" significa um após outro - pois somente assim o intérprete poderia trans­mitir a mensagem divina à igreja. E assim, tudo seria feito "decentemente e com ordem" (1 Co 14.40).
Entendemos que se alguém falar em línguas, mes­mo as entendidas pelos homens, como aconteceu no dia de Pentecoste, esta pessoa está sendo usada pelo Espírito Santo em variedade de línguas. E se de algu­ma maneira não as entendermos, neste caso o que fala "não fala aos homens, senão a Deus" (1 Co 14.2).
Podemos, portanto, chamar as línguas estranhas não interpretadas de "mistério" ou "sinal"; enquanto que as que as interpretadas compreendem a "variedade de línguas" (1 Co 12.10; 13.1; 14.2,26,27,28).

III - O Dom de Interpretação das Línguas

"E a outro, a interpretação das línguas" (1 Co 12.10).
A palavra "interpretação" nada tem a ver com a "tra­dução", no sentido em que a conhecemos. Não se refere ao processo intelectual pelo qual se dá o sentido prosaico e literal de palavras faladas ou escritas. A "interpreta­ção" em foco é totalmente milagrosa. Trata-se de um dom do Espírito Santo que capacita a pessoa a traduzir simultaneamente o que está sendo falado através do dom de variedade de línguas.
Assim, o que fala em línguas não deve procurar decifrá-las, mas pode receber a interpretação da mesma fonte divina de onde surgiram. A não ser que Deus queira fazer como no dia de Pentecoste, quando o Espírito Santo desceu repentinamente, conforme descrito em Atos 2.2-4: "E, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas re­partidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem".
Nessa operação miraculosa do Espírito de Deus, as "línguas" foram repartidas conforme em cerca de 15 re­giões diferentes, a saber: "Partos e medas, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, e Judéia, e Capadócia, e Ponto, e Ásia, e Frígia, e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos (tanto judeus como prosélitos), e cretenses, e árabes..." (At 2.9-11). A lista do escritor sagrado não é propriamente lingüística, e sim geográfica, cujo propósito é ilustrar a grande variedade de povos, isto é, pessoas de "todas as nações que estão debaixo dos céus".
Besser salienta que a "linguagem dos judeus era por demais débil para descrever ao mesmo tempo e para o mundo inteiro essas maravilhosas 'grandezas de Deus'; seriam necessários todos os idiomas do mundo para pu­blicar e glorificar as obras do Senhor do Universo". En­tretanto, com um único toque do Espírito Santo tudo ficou resolvido.
O mesmo acontecerá na continuidade da pregação do Evangelho do Reino, principiada por João Batista e Cris­to mas interrompido pela rejeição do Rei. Porém este voltará em glória, no final da Grande Tribulação, prepa­rando assim as nações para o reino milenial do Filho de Deus. O que não pode ser visto com nitidez, por causa da sombra humana, será revelado por um anjo em apenas um instante: "E vi outro anjo voar pelo meio do céu, e tinha o evangelho eterno, para o proclamar aos que habi­tam sobre a terra, e a toda nação, e tribo, e língua, e povo" (Ap 14.6). ([3])
Esta mensagem é universal, como o foi, sem dúvida, a mensagem dada pelo Espírito Santo através do dom de variedade de línguas, no dia de Pentecoste! O resultado certamente foi o descrito por Paulo em 1 Coríntios 14.22: "De sorte que as línguas são um sinal, não para os fiéis, mas para os infiéis".
No dia de Pentecoste, duas coisas importantes com relação a interpretação da variedade de línguas podem ter acontecido:
    as línguas faladas eram o idioma materno de cada pessoa ali presente (At 2.8);
    a linguagem era espiritual, e Deus capacitou cada um dos presentes a compreender o significado                das pala­vras (1 Co 14.21).
Seja como for, o resultado foi glorioso: Deus falou através do seu Espírito, e falou muito bem! (Hb 1.1; 2.4).

Severino Pedro da Silva:


CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado. Milenium

Justino Mártir escreve sua Apologia:

Justino Mártir escreve sua Apologia:


O jovem filósofo caminhava junto à costa, sua mente estava agitada, sempre ativa, buscando novas verdades. Ele estudara os ensinamentos dos estoicos, de Aristóteles e de Pitágoras; e, naquele momento, era adepto do platonismo, que prometera uma visão de Deus aos que sondassem a verdade com profundidade suficiente. Era isso que o filósofo Justino queria.

Enquanto caminhava, encontrou-se com um cristão, já idoso. Justino ficou perplexo diante de sua dignidade e humildade. O homem citou várias profecias judaicas, mostrando que o caminho cristão era realmente verdadeiro. Jesus era a verdadeira expressão de Deus.

Esse encontro ocasionou grande mudança na vida de Justino. Debruçado sobre aqueles escritos proféticos, lendo os evangelhos e as cartas de Paulo, ele se tornou um cristão dedicado. Assim, nos últimos trinta anos de sua vida, viajou, evangelizou e escreveu. Desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento da teologia da igreja, assim como da compreensão que a igreja tinha de si mesma e da imagem que apresentava ao mundo.

Praticamente desde o início, a igreja funcionou em dois mundos: o judeu e o gentío. O livro de Atos dos Apóstolos registra o lento e, às vezes, doloroso desabrochar do cristianismo no mundo gentío. Pedro e Estêvão pregaram aos ouvintes judeus, e Paulo falou aos filósofos atenienses e aos governadores romanos.
A vida de Justino apresenta muitos paralelos com a vida de Paulo. O apóstolo era um judeu nascido em área gentia (Tarso); Justino era um gentio nascido em área judaica (a antiga Siquém). Eles tinham boa formação e usavam o dom da argumentação para convencer judeus e gentíos da verdade de Cristo. Os dois foram martirizados em Roma em razão de sua fé.

Durante os reinados dos imperadores do século I, por exemplo, Nero e Domiciano, a igreja se esforçava sobreviver, para continuar sua tradição e para mostrar ao mundo o amor de Jesus Cristo. Os não-cristãos viam o cristianismo como uma seita primitiva, uma ramificação do judaismo caracterizada por ensinamentos e práticas estranhas.
Em meados do século II, sob o comando de imperadores mais razoáveis como Trajano, Antonino Pio e Marco Aurélio, a igreja teve uma nova preocupação: explicar o motivo de sua existência para o mundo de maneira convincente. Justino se tornou um dos primeiros apologistas cristãos, ou seja, um dos que explicavam a fé como sistema racional. Com escritores que surgiriam mais tarde — como Orígenes e Tertuliano —, ele interpretou o cristianismo em termos que seriam familiares aos gregos e aos romanos instruídos de seus dias.

A maior obra de Justino, a Apologia, foi endereçada ao imperador Antonino Pio (a palavra grega apologia refere-se à lógica na qual as crenças de uma pessoa são baseadas). Enquanto Justino explicava e defendia sua fé, ele discutia com as autoridades romanas por que considerava errado perseguir os cristãos. De acordo com seu pensamento, as autoridades deveriam unir forças com os cristãos na exposição da falsidade dos sistemas pagãos.
Para Justino, toda verdade era verdade de Deus. Os grandes filósofos gregos haviam sido inspirados por Deus até certo ponto, mas permaneciam cegos com relação à plenitude da verdade de Cristo. Desse modo, Justino trabalhou livremente com o pensamento grego, explicando Cristo como seu cumprimento. Ele se aproveitou do princípio apresentado pelo apóstolo João, no qual Cristo é o Logos, a Palavra. Deus Pai era santo e separado da humanidade maligna, e Justino concordava com Platão nesse aspecto. Porém, por intermédio de Cristo, seu Logos, Deus pôde alcançar os seres humanos. Como o Logos de Deus, Cristo era parte da essência de Deus, embora separado, do mesmo modo que uma chama se acende a partir de outra (é por isso que o pensamento de Justino foi fundamental no desenvolvimento da consciência da igreja com relação à Trindade e à encarnação).

Contudo, Justino tinha uma linha de pensamento judia que caminhava com suas inclinações gregas. Era fascinado pelas profecias já cumpridas. Ε possível que isso tenha nascido no encontro com o idoso à beira-mar. Porém, ele percebeu que a profecia hebraica confirmou a identidade singular de Jesus Cristo. Como Paulo, Justino não abandonou os judeus à medida que se aproximava dos gregos. Em Diálogo com Trifão, outra grande obra, ele escreve a um judeu, um conhecido dele, apresentando Cristo como cumprimento da tradição hebraica.
Além de escrever, Justino viajou bastante, sempre argumentando a favor da fé. Ele se encontrou com Trifão em Êfeso. Em Roma, encontrou-se com Marcião, o líder gnóstico. Em outra ocasião, durante uma viagem a Roma, Justino se indispôs com um homem chamado Crescendo, o Cínico. Quando Justino retornou a Roma, por volta do ano 165, Crescendo o denunciou às autoridades. Justino foi preso, torturado e decapitado, com outros seis crentes.

Justino escreveu certa vez: "Vocês podem nos matar, mas não podem nos causar dano verdadeiro". O apologista apegou-se a essa convicção até a morte. Ao fazer isso, recebeu o nome que passaria a usar por toda a história: Justino Mártir.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Wycliffe supervisiona a tradução da Bíblia para o inglês

"Uma figura alta e delgada, coberta com uma longa toga negra [...] a face, adornada com uma comprida barba; ele tinha traços fortes e bem nítidos; os olhos eram claros e penetrantes; os lábios firmemente fechados, um sinal de sua resolução."
Assim, João Wycliffe apresentou-se diante do bispo de Londres, em 1377, para responder à acusação de heresia. Seu amigo e defensor, João de Gaunt, duque de Lancaster, adentrou pela igreja com passos firmes e resolutos. Um simples detalhe, se Wycliffe deveria ficar em pé ou sentado, tornou-se discussão. Esse pequeno detalhe chegou a se transformar em uma briga calorosa, e João de Gaunt fugiu para preservar sua vida. Podemos imaginar a cena, Wycliffe sendo despachado por seus próprios amigos. Assim foi sua vida. Wycliffe era ousado e franco quanto à sua teologia e à sua educação. Contudo, quando se encaminhou para a política, ficou preso no meio do fogo cruzado da luta de outras pessoas.

João Wycliffe foi o principal erudito de sua época. As pessoas, por toda a Inglaterra, respeitavam sua sabedoria. A educação universitária era ainda um fenômeno relativamente novo, e Wycliffe pode ser grandemente responsabilizado pela grande reputação de Oxford, onde estudou e lecionou.
Sua vida, porém, foi marcada pela controvérsia. Tinha o perigoso hábito de dizer o que pensava. Quando seus estudos o levaram a questionar os ensinamentos católicos oficiais, ele realmente o fez. Questionou o direito de a igreja ter poder temporal e de possuir riqueza. Discutiu a venda de indulgências — cartas que, de modo geral, eram consideradas um meio para perdoar os pecados —, o cerimonial da igreja, a adoração supersticiosa de santos e de relíquias, assim como a autoridade do papa. Ele até mesmo questionou a visão oficial da eucaristia (a doutrina da transubstanciação) defendida pelo IV Concilio de Latrão. Apresentava-se, com freqüência, diante de bispos e de concilios para defender essas idéias, e outros posicionamentos que advogava.
A Inglaterra tinha muito ressentimento contra a Igreja Romana, mesmo no século xiii. A liderança secular era forte na Grã-Bretanha. Os príncipes — e muitos cidadãos — se ressentiam da maneira como a igreja estava apegada ao poder e à riqueza. João de Gaunt, muitas vezes, usava as idéias e a reputação de Wycliffe em suas discussões com a igreja. Como recompensa, ele protegia Wycliffe da hierarquia eclesiástica.
Wycliffe foi um herói popular durante algum tempo. Seus seguidores, os lolardos — sacerdotes que seguiam a pobreza apostólica e ensinavam as Escrituras às pessoas comuns — viajavam por toda a Inglaterra levando o Evangelho. Conforme sua influência declinou, porém, Wycliffe tornou-se cada vez menos útil a seus benfei-tores, inclusive para Lancaster. Uma audiência tumultuada em 1377 resultou no banimento de seus escritos. A oposição se intensificou. Apesar de ser poupado da violência, seus textos foram queimados, e ele foi destituído da posição que tinha em Oxford, ficando proibido de disseminar suas idéias.
Isso deu a ele tempo para trabalhar na tradução da Bíblia. Wycliffe defendia a idéia de que todo o mundo deveria poder ler as Escrituras na própria língua. "Visto que a Bíblia contém Cristo — tudo o que é necessário para a salvação —, ela é necessária para todos os homens, e não apenas para os sacerdotes", escreveu ele. Assim, a despeito da reprovação da igreja, juntou-se a outros estudiosos para produzir a primeira tradução completa da Bíblia para o inglês. Usando uma cópia manuscrita da Vulgata, Wycliffe trabalhou arduamente para tornar as Escrituras inteligíveis para seus compatriotas. Uma primeira edição foi publicada. Ela foi aprimorada na segunda edição, que só ficou completa após a morte de Wycliffe. Apesar disso, essa edição ficou conhecida por Bíblia de Wycliffe e foi distribuída, ilegalmente, pelos lolardos.
Wycliffe sofreu um derrame quando estava na igreja e morreu em 31 de dezembro de 1384. O Concilio de Constança, 31 anos mais tarde, o excomungou, e, em 1428, seus ossos foram exumados e queimados, e as cinzas, espalhadas no rio Swift.
Ninguém poderia imaginar que suas idéias se espalhariam tão rapidamente pela Europa. O efeito de seus ensinamentos sobre os líderes posteriores, como João Hus, fez com que ficasse conhecido por a "Estrela da manhã da Reforma". Ele próprio procurou permanecer na Igreja Romana por toda sua vida, mas no coração e na mente de seus ouvintes, a Reforma já estava a caminho.