domingo, 19 de fevereiro de 2017

"Jesus Cristo morreu pelos seus pecados"




A graça tem cheiro de escândalo. Quando alguém perguntou ao teólogo Karl Barth o que ele diria a Adolf Hitler, ele respondeu: "Jesus Cristo morreu pelos seus pecados". Pelos pecados de Hitler? De Judas? A graça não tem limites?
Dois gigantes do Antigo Testamento, Moisés e Davi, cometeram homicídio e Deus ainda os amava. Como já mencionei, outro homem que dirigiu uma campanha de torturas criou um padrão missionário que nunca foi igualado. Paulo nunca se cansou de descrever esse milagre do perdão: "Outrora fui blasfemo e perseguidor e injuriador, mas alcancei misericórdia, porque o fiz ignorantemente, na incredulidade; e a graça de nosso Senhor superabundou com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. Fiel é esta palavra e digna de toda a aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal".

Ron Nikkel, que dirige a Associação Internacional nas Prisões, tem um discurso padrão que transmite aos prisioneiros em todo o mundo. "Não sabemos quem vai para o céu", ele diz. E prossegue o discurso: "Jesus deu a entender que uma porção de pessoas serão surpreendidas: 'Nem todos os que me dizem: Senhor, Senhor, entrarão no reino dos céus'. Mas nós sabemos que alguns ladrões e homicidas estarão ali. Jesus prometeu o céu ao ladrão na cruz e o apóstolo Paulo foi cúmplice de assassinatos". Tenho observado a expressão nos rostos de prisioneiros em lugares como o Chile, Peru e Rússia quando a verdade de Ron atinge o ponto. Para eles, o escândalo da graça soa bom demais para ser verdade.

Quando Bill Moyers filmou um especial para a televisão a respeito do hino "Maravilhosa Graça", sua câmera seguiu Johnny Cash até as entranhas de uma prisão de segurança máxima. — O que este hino significa para você? — Cash perguntou aos prisioneiros depois de cantar o hino. Um homem cumprindo pena por tentativa de assassinato replicou: — Fui diácono, membro de igreja, mas não sabia o que a graça significava até que vim parar em um lugar como este.

O potencial para o "abuso da graça" ficou claro para mim, de uma maneira bastante forte, em uma conversa com um amigo que chamarei de Daniel. Já era tarde da noite e eu estava sentado em um restaurante com Daniel ouvindo-o confidenciar-me que havia decidido abandonar sua esposa depois de quinze anos de casamento. Ele havia se envolvido com uma mulher mais jovem e mais bonita, alguém que o fazia sentir-se vivo, "como eu não me sentia há anos", conforme ele mesmo dizia. Sua esposa e ele não tinham grandes incompatibilidades. Ele simplesmente queria uma mudança, como um homem que deseja ardentemente um carro novo.
Daniel, um cristão, conhecia bem as conseqüências pessoais e morais do que ia fazer. Sua decisão de separar-se infligiria prejuízos permanentes à sua esposa e aos três filhos. Mesmo assim, ele disse, a força que o impulsionava para a mulher mais jovem, como um ímã poderoso, era forte demais para ele poder resistir.
Escutei a história de Daniel com tristeza e amargura, falando pouco enquanto tentava absorver a notícia. Então, durante a sobremesa, ele deixou cair a bomba: "Na verdade, Philip, quero saber uma coisa. O motivo porque quis falar com você hoje à noite foi para lhe perguntar o que está me preocupando. Você estuda a Bíblia. Você acha que Deus pode perdoar uma coisa tão horrível como a que vou fazer?".

A pergunta de Daniel jazia na mesa como uma serpente viva; tomei três xícaras de café antes de me atrever a dar uma resposta. Nesse intervalo, pensei muito na repercussão da graça. Como poderia dissuadir meu amigo de cometer um erro terrível se ele souber que o perdão jaz ali ao virar a esquina? Ou, como na sombria história de Robert Hughes, na Austrália, o que evitaria que um condenado cometesse homicídio se ele soubesse com antecedência que seria perdoado?
Há um "gancho" na graça que preciso mencionar agora. Nas palavras de C. S. Lewis:5 "Agostinho diz 'Deus dá onde Ele encontra mãos vazias'. Um homem cujas mãos estão cheias de pacotes não pode receber um presente". A graça, em outras palavras, tem de ser recebida. Lewis6 explica que aquilo que eu chamei de "abuso da graça" brota de uma confusão entre tolerância e perdão: "Tolerar um erro é simplesmente ignorá-lo, tratá-lo como se fosse uma coisa correta. Mas o perdão precisa ser aceito, além de oferecido, para que seja completo. Um homem que não admite culpa não pode aceitar o perdão".

Foi o que eu disse ao meu amigo Daniel, em resumo. "Se Deus pode perdoá-lo? Naturalmente. Você conhece a Bíblia. Deus usa homicidas e adúlteros. A bem da verdade, Pedro e Paulo, dois homens que falharam muito, lideraram a igreja do Novo Testamento. O perdão é problema nosso, e não de Deus. O que nós temos de fazer para cometer pecado é que nos distancia de Deus — nós nos transformamos no próprio ato de rebeldia — e não há garantia de que um dia voltemos. Você me pergunta agora a respeito do perdão, mas será que mais tarde você vai querer o perdão, especialmente se ele envolver arrependimento?"
Meses depois de nossa conversa, Daniel fez sua escolha e abandonou a família. Ainda não vi evidências de arrependimento. Agora ele se inclina a racionalizar sua decisão como uma maneira de fugir de um casamento infeliz. Ele se afastou de seus antigos amigos por considerá-los "demasiadamente estreitos e críticos" e procura substitutos que celebrem sua recém-descoberta libertação. Para mim, entretanto, Daniel não parece muito liberado. O preço da "liberdade" significou virar as costas para aqueles que mais se interessam por ele. Ele me diz também que agora Deus não faz mais parte de sua vida. "Talvez mais tarde", ele diz.
Deus assumiu um grande risco anunciando o perdão com antecedência. E o escândalo da graça envolve uma transferência desse risco para nós.
"Verdadeiramente é um erro estar cheio de faltas", disse Pascal, "mas é um erro ainda maior estar cheio delas e não desejar reconhecê-las".
As pessoas se dividem em duas categorias. Não estou me referindo aos culpados e aos "justos", como muitas pessoas. pensam. Antes, porém, em duas categorias diferentes de pessoas culpadas. Há pessoas culpadas que reconhecem seus en"os. E pessoas culpadas que não os reconhecem. São dois grupos que convergem em uma cena registrada em João 8.
O incidente acontece nos átrios do templo, onde Jesus está ensinando. Um grupo de fariseus e mestres da lei interrompe o "culto" arrastando uma mulher apanhada em adultério. Segundo o costume, ela é desnuda da cintura para cima como prova de sua vergonha. Aterrorizada, indefesa, publicamente humilhada, a mulher se encolhe diante de Jesus, os braços cobrindo os seios nus.
Adultério envolve duas pessoas, naturalmente, mas a mulher está sozinha diante de Jesus (talvez tivesse sido apanhada na cama com um fariseu?). João deixa claro que os acusadores estavam mais interessados em criar uma armadilha para Jesus do que punir um crime. E a armadilha era muito inteligente. A lei de Moisés especificava morte por apedrejamento para o adultério, mas a lei romana proibia os judeus de realizar execuções. Jesus obedeceria a Moisés ou a Roma? Ou Ele, notório por sua misericórdia, encontraria uma maneira dessa adúltera escapar? Neste caso, teria de desafiar a lei de Moisés diante de uma multidão reunida nos próprios átrios do templo. Todos os olhos se fixaram em Jesus.
Nesse momento cheio de tensão, Jesus faz uma coisa diferente: Ele se inclina e escreve no chão com o dedo. Esta, de fato, é a única cena dos evangelhos que apresenta Jesus escrevendo. Para suas únicas palavras escritas Ele escolheu como agente um galho e escreveu na areia, sabendo que os pés, o vento, ou a chuva logo as apagariam.
João não nos conta o que Jesus escreveu na areia. No seu filme a respeito da vida de Jesus, Cecil B. De Mille o apresenta anotando os nomes dos diversos pecados: adultério, homicídio, orgulho, avareza, luxúria. Cada vez que Jesus escreve uma palavra, alguns fariseus se afastam. A imaginação de De Mille, como todas as outras, é uma conjectura. Sabemos apenas que nesse momento carregado de perigo Jesus pára, fica em silêncio e escreve com o dedo na areia. O poeta irlandês Seamus Heaney7 comenta que Jesus "marca passo em todo o sentido dessa expressão", concentrando a atenção de todos e criando uma brecha de significado entre o que está acontecendo e o que o auditório deseja que aconteça.
Aqueles que estão no auditório vêem, sem dúvida, duas categorias de atores no drama: a mulher culpada, apanhada com as mãos sujas, e os acusadores "justos", que são, afinal de contas, profissionais religiosos. Quando Jesus finalmente fala, destrói uma daquelas categorias. — Se algum de vocês não tem pecado — diz o Filho de Deus, — que seja o primeiro a atirar uma pedra nesta mulher.
Novamente Ele se inclina para escrever, marcando passo de novo, e, um a um, todos os acusadores se afastam.
A seguir, Jesus se endireita e dirige-se à mulher, que ficou sozinha diante dele. — Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?
— Ninguém, senhor — ela diz.
E para a mulher, tomada pelo terror da expectativa de uma possível execução, Jesus dá o veredito: — Nem eu te condeno... Vai e abandona tua vida de pecado.
Assim, em uma pincelada brilhante, Jesus substitui as duas categorias presumidas, os justos e os culpados, por duas categorias diferentes: os pecadores que admitem o pecado e os pecadores que o negam. A mulher apanhada em adultério, desamparada, admitiu sua culpa. Muito mais problemáticas eram as pessoas que, como os fariseus, negavam ou reprimiam a culpa. Eles também precisavam estar de mãos vazias para receber a graça divina. O dr. Paul Tournier8 expressa este padrão em linguagem psiquiátrica: "Deus apaga a culpa consciente, mas traz à consciência a culpa reprimida".

A cena que se encontra em João 8 me desconcerta porque, por causa de minha própria natureza, identifico-me mais com os acusadores do que com a acusada. Nego mais do que confesso. Envolvendo meus pecados em um manto de respeitabilidade, raramente — ou nunca — me deixo apanhar em uma indiscrição espalhafatosa e pública. Mas, se entendo corretamente esta história, a mulher pecadora é a que está mais próxima do reino de Deus. De fato, só posso avançar no reino se me tornar como essa mulher: trêmula, humilde, sem desculpas, as mãos abertas para receber a graça de Deus.

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