sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

SABEDORIA DE SERPENTE ( "Podemos ser bons sem Deus?" )



A igreja... não é a senhora ou a serva do Estado, masr antes, a sua consciência. Ela deve ser a orientadora e a crítica do Estado. E nunca sua ferramenta!

Martin Lutner King Jr.


E hoje? Estamos escolhendo nossas batalhas com sabedoria? Obviamente, aborto, questões sexuais e definições de vida e morte são problemas dignos de nossa atenção. Mas, quando leio a literatura produzida por evangélicos que estão na política, encontro assuntos como o direito de portar armas, abolição do Departamento de Educação, acordos comerciais da NAFTA, o tratado do Canal do Panamá e limites de períodos para os congressistas. Há alguns anos, ouvi o presidente da Associação Nacional dos Evangélicos incluir em sua lista das dez preocupações principais a "rejeição do imposto sobre lucros do capital". Com demasiada freqüência a agenda dos grupos religiosos conservadores está de acordo com a linha da agenda dos políticos conservadores e não fundamenta suas prioridades em uma fonte transcendente. Como todos os outros, os evangélicos têm o direito de apresentar suas propostas em todas essas questões, mas, no momento em que as apresentamos como parte de alguma plataforma "cristã", abandonamos nosso elevado fundamento moral.
Quando o movimento dos direitos civis — a grande cruzada moral do nosso tempo — emergiu em meados da década de sessenta, os evangélicos, na sua maioria, permaneceram nas laterais. Muitas igrejas sulistas, como a minha, resistiram ferozmente às mudanças. Gradualmente, oradores como Billy Graham e Oral Roberts apoiaram o movimento. Apenas agora denominações evangélicas como a Comunidade Pentecostal da América do Norte e os Batistas do Sul procuraram unir-se com as igrejas negras. Somente agora os movimentos populistas como os Promise Keepers estão fazendo da reconciliação racial uma prioridade.
Para vergonha nossa, Ralph Reed admite que a centelha da recente onda dos evangélicos na política não foi acesa pela preocupação com o aborto, a injustiça na África do Sul, ou qualquer outra questão moral constringente. Não, a administração Carter acendeu o novo ativismo quando mandou que o Departamento do Tesouro investigasse as escolas particulares, exigindo que provassem que não foram organizadas com o intuito de preservar a segregação. Pegando nas armas por causa desta brecha na barreira igreja-estado, os evangélicos foram às ruas.
Com demasiada freqüência, em suas incursões na política, os cristãos provaram ser "sábios como as pombas" e "inofensivos como as serpentes" — exatamente o oposto do preceito de Jesus. Se esperamos que a sociedade leve a sério nossa contribuição, então temos de demonstrar mais sabedoria em nossas escolhas.
Minha terceira conclusão a respeito das relações igreja-estado é um princípio que tomei emprestado de G. K. Chesterton: a intimidade entre a igreja e o Estado é boa para o Estado e ruim para a igreja.
Ja adverti contra o fato de a igreja estar transformando-se em "exterminadora moral" do mundo. Na verdade, o Estado precisa de exterminadores morais e vai recebê-los de braços abertos sempre que a igreja fizer esse favor. O presidente Eisenhower disse à nação em 1954: "Nosso governo não faz sentido se não for fundamentado sobre uma fé religiosa profundamente sentida — e não me importo qual seja ela". Eu costumava rir da declaração de Eisenhower até que, em um fim de semana, fiquei diante de uma situação que me mostrou a pura verdade por trás dessa declaração.
Estava participando de um fórum em New Orleans com dez cristãos, dez judeus e dez muçulmanos; a ocasião coincidia com o auge da temporada do Carnaval. Ficamos em uma centro católico para retiros, longe do rebuliço da cidade. Uma noite, porém, alguns dos participantes foram passear pelo bairro francês para ver um dos desfiles do Carnaval. Foi uma cena assustadora.
Milhares de pessoas se acotovelavam nas ruas tão perto umas das outras que fomos arrastados por uma onda humana, incapazes de nos libertar. Moças debruçavam-se sobre as sacadas gritando: "Seios por conta!" Em troca de uma bijuteria vistosa, elas levantavam a camiseta e se desnudavam. Por um presente mais elaborado, ficavam nuas. Vi homens embriagados pegarem uma menina adolescente na multidão gritando: "Mostre seus seios!"! Quando ela se recusou, arrancaram a blusa da moça, levantaram-na até a altura dos ombros e a apalpavam enquanto ela gritava, protestando. Em sua bebedeira, lascívia e até mesmo violência, os foliões do Carnaval estavam demonstrando o que acontece quando os desejos humanos recebem permissão de correr soltos.
Na manhã seguinte, de volta ao centro do retiro, comparamos as histórias da noite anterior. Algumas das mulheres, feministas ardentes, estavam muito abaladas. Sabíamos que cada uma de nossas religiões tinha algo a contribuir para a sociedade em geral. Os muçulmanos, os cristãos e os judeus, todos nós ajudávamos a sociedade a compreender por que tal comportamento animal não era apenas inaceitável, mas também maligno. A religião define o mal e dá às pessoas a força moral para resistir. Como "a consciência do Estado", ajudamos a informar o mundo a respeito da justiça e da retidão.
Nesse sentido cívico, Eisenhower13 estava certo: a sociedade precisa de religião, e pouco importa que tipo de religião. A Nação Islâmica ajuda a limpar o gueto; a igreja mórmon diminui a criminalidade em Utah, tornando-o um Estado de famílias e amigos. Os fundadores dos Estados Unidos reconheceram que especialmente uma democracia, menos dependente da ordem imposta e mais da virtude dos cidadãos livres, precisa de um fundamento religioso.
Alguns anos atrás, o filósofo Glenn Tinder escreveu um artigo amplamente comentado para The Atlantic Monthly [O mensãrio atlânticol intitulado "Podemos ser bons sem Deus?". Sua conclusão, meticulosamente discutida, em uma só palavra foi: não. Os seres humanos, inevitavelmente, derivam para o hedonismo e egoísmo a não ser que alguma coisa transcendente — o amor ãgape — os leve a se importar com alguém mais do que com eles mesmos, era o que Tinder argumentava. Com senso de oportunidade irônico, o artigo apareceu um mês depois da queda da Cortina de Ferro, um evento que acabou com o idealismo daqueles que haviam tentado construir uma sociedade justa sem Deus.
Não nos atrevemos, entretanto, a esquecer a última parte do aforismo de Chesterton: embora um acomodamento entre a igreja e o Estado possa ser bom para o Estado, é ruim para a igreja. Aí reside o principal perigo para a graça: o Estado, que governa pelas regras da não-graça, gradualmente esgota a sublime mensagem da graça da igreja.
Insaciável pelo poder, o Estado pode muito bem decidir que a igreja seria ainda mais útil se ele a controlasse. Isto aconteceu mais dramaticamente na Alemanha nazista, quando, de forma sinistra, os cristãos evangélicos foram atraídos pela promessa de Hitler de restaurar a moral do governo e da sociedade. Muitos líderes protestantes inicialmente agradeceram a Deus pelo surgimento dos nazistas, que pareciam a única alternativa para o comunismo. De acordo com Karl Barth,14 a igreja "quase unanimemente recebeu bem o regime de Hitler, com confiança verdadeira, realmente com as mais elevadas esperanças". Tarde demais aprenderam que, mais uma vez, a igreja fora seduzida pelo poder do Estado.
A igreja opera melhor como uma força de resistência, um contrapeso ao poder consumidor do Estado. Quanto mais íntima ela fica do governo, mais diluída fica a sua mensagem. O próprio evangelho muda quando se transforma em religião civil. A ética elevada de Aristóteles, lembra-nos Alasdair Maclntyre, não dá lugar a um homem bom demonstrando amor por um homem mau. Em outras palavras, não entende um evangelho da graça.
Resumindo, o Estado deve sempre diluir a qualidade absoluta dos mandamentos de Jesus e transformá-los em uma forma de moralidade externa — precisamente o oposto do evangelho da graça. Jacques Ellul chega ao ponto de dizer que o Novo Testamento não ensina uma coisa tal como "ética judaico-cristã". Ele ordena conversão e, depois, isto: "Sede vós, pois, perfeitos,15 como perfeito é o vosso Pai que está nos céus". Leia o Sermão do Monte e tente imaginar qualquer governo agindo segundo esse conjunto de leis.
Um governo pode fechar lojas e teatros aos domingos, mas não pode exigir a adoração. Pode prender e punir os assassinos da KKK, mas não pode curar o seu ódio, muito menos ensinar-lhes amor. Pode aprovar leis tornando o divórcio mais difícil, mas não pode obrigar os maridos a amar suas esposas e as esposas a amar seus maridos. Pode dar subsídios aos pobres, mas não pode forçar os ricos a demonstrar por eles compaixão e justiça. Pode banir o adultério, mas não a concupiscência; o roubo, mas não a cobiça; a fraude, mas não o orgulho. Pode encorajar a virtude, mas não a santidade.
Philip Yancey

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